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Na sala de espera do dentista onde me encontrava desde o Quaternário (impressão minha dada o atraso do ilustre clínico pois a consultava marcada para as 15:00 TMG e com o decorrer lento do tempo, já eram 22:30 também TMG) entrou um senhor preto de óculos escuros, vestindo um fato branco e sobraçando uma pasta Camel de cabedal puro. Do animal que o fornecera bem contra vontade, eu não fazia a mínima ideia; não sou especialista em couros, mas posso afiançar que não era imitação em plástico.
A empregada do atendimento, perguntada pelos doentes se o doutor já chegara, há horas que respondia que não, mas estava quase. Havia mais pessoas à espera do odontologista todas com cara de caso, lendo as tradicionais revistas de há dez meses – se não mais – jogando em smartfones, telefonando para um familiar que se encontrava na Patagónia, alguns ouvindo música através de auriculares, outros ainda classificando o atrasado com vocábulos impublicáveis mas com os quais as parceiras e os parceiros concordavam. Enfim, o habitual.
O senhor preto que entrara (que em linguagem politicamente correcta devia ter chamado africano, mas há-os
também brancos, mestiços, mulatos e similares, por isso fico na minha e também porque sei que negro nos EUA é pejorativos, eles dizem black people) depois de se ter informado na menina do balcão deitou os olhos pela assistência em busca de cadeira. Mas, ai, estavam todas ocupadas…; por via disso o cliente num gesto de grande dignidade e alguma esperança decidiu-se por esperar de pé.
No assento ao lado do meu encontrava-se um sujeito da minha colheita de quarenta que falava em decibéis bastante menos simpáticos. De quando em vez baixava o tom da voz e consultava o relógio, aliás um Rollex verdadeiro e em ouro, e murmurava um qualquer comentário mas mesmo assim perfeitamente audível. O médico atrasado creio que não gostaria de ouvi-lo até pelos calões que o cavalheiro usava. No entanto ouviam-se uns tem toda a razão.
A empregada levantou-se e foi abrir a porta de entrada pela qual penetrou um homem com cara de assassino, ainda por cima mal disposto: era o estomatologista. Nem as boas noites deu, muito menos pediu desculpa do atraso. Há homens assim e por isso falei com os meus botões que o senhor Darwin tinha razão. Entrou no seu gabinete do tipo inquisitório qual Torquemada preparando mais um auto-de-fé.
Mesmo assim renasceu a esperança no atendimento embora bastante tardio e a gente entreolhou-se; uma senhora obesa avançou convictamente: era a primeira da lista de marcações que um computador apresentava. Nisto tocou o intercomunicador, a empregada travou a cliente e chamou o senhor de fato branco. Fechada a porta do consultório já com o cidadão lá dentro, o meu colega de assento falou alto e bom som que andara na guerra do Ultramar e para ele os pretos apenas eram alvos das G3.
Não se ouviram aplausos mas a concordância era evidente; porém a recepcionista respondeu que o senhor de fato
branco e pasta Camel também andara na guerra colonial vestindo a farda do exército português e fora lá que uma mina lhe partira os maxilares e arrancara quase todos os dentes por ter-lhe rebentado na cara. E acrescentou que ainda fizera mais estragos: cegara-lhe uma vista partira-lhe uma perna e também ficara sem os testículos. Por isso passara à frente da restante clientela. Fez-se um silêncio na sala. E do fundo dela surgiu uma voz: agora é que vamos ver quem tomates - pretos?’
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